sexta-feira, maio 28, 2010

O crescimento do Brasil debaixo do braço

Brenno Sarques

O Brasil está mudando. Constatei este fato recentemente, mas não devido às previsões de crescimento, do superávit da balança comercial, dos milhões de carros vendidos por ano, do aumento do consumo nas classes C, D e E. Isso é propaganda de governo. Ninguém anda na rua com parte do alfabeto estampado na testa, ninguém sabe quantos quilos de arroz comeu no mês, ninguém fecha o ano comemorando que seu custo de vida subiu apenas 3,89%.

A mudança está em pequenos detalhes que fazem toda a diferença. E meu exemplo maior mostra realmente a transição de uma vida encardida para um futuro promissor.

É o caso de Robsney Clemente da Silva (sobrenome óbvio), ou simplesmente Robs. Por muitos anos ele e sua família patinaram na escadaria social. Seguraram no corrimão da economia para subir um degrau, mas a gordura sebosa das bolhas especulativas, dos juros megalomaníacos das Casas Bahia e do aumento no transporte público os fazia escorregar e voltar ao patamar primitivo. Tentaram, e de tanto tentar, conseguiram. Agora orgulhosamente fazem fazer parte da massa amorfa chamada de público consumidor de bens populares. É o cereal matinal Kerogs (não confundam com Kellogs) que invadiu o café da manhã. É a carne moída que agora ornamenta o molho de tomate sobre o macarrão. É a oportunidade de reunir a família em torno de uma pizza de mussarela.

Mas a grande prova de que o Brasil é campeão em mobilidade social foi quando Robsney, ou simplesmente Robs, comprou seu primeiro desodorante. Isso não foi uma decisão precipitada. Por tempos este típico cidadão do novo Brasil esteve relutante, refletindo sobre a real necessidade de um item que até pouco atrás era símbolo da burguesia do asfalto. Ponderou sobre a reação da comunidade, sobre as reações químicas que poderiam ocorrer em sua pele, quiçá se era alérgico a tal composição misteriosa.

Mas a sua combinação genética derivada de africanos, índios e portugueses, passando depois por cafuzos, mulatos e mamelucos, resultando no que hoje chamamos de evolução natural, exige uma boa dose de cultura francesa para dissipar odores. Robsney, ou simplesmente Robs, não se dava conta de que aquele odor que emanava de suas axilas lhe causava prejuízo social, ou seja: espantava pessoas e oportunidades.

Os benefícios começaram logo na compra do bendito artefato nacirêmico. A própria atendente da farmácia abriu um sorriso sincero e nem um pouco inocente quando o olfatível cliente finalmente retirou da gôndola um tubo de desodorante. Não era um spray em embalagem de alumínio, não tinha um sistema revolucionário de trava (que ninguém sabe como funciona direito e acaba quebrando de tanto mexer), tampouco despontava entre as novidades do mercado. O tubo era simples, de plástico, com cheiro doce e forte, e o melhor: era o mais barato.

A emoção de Robs era a mesma de quando um jovem mais abastado compra seu primeiro carro: meia vida, modelo antigo, pneu careca, mas uma alegria que não cabe no peito. Um brilho nos olhos típico das crianças que ganham chocolate. Assim estava Robsney, ou simplesmente Robs.

Até a hora de pagar, milhões de dúvidas turbilhonavam na cabeça daquele rapaz, causando-lhe insegurança e medo. Pagou, sabendo que aqueles poucos reais poderiam ter sido investidos em outros projetos: um boné, um adesivo “Vida Loka” para sua janela, ou até mesmo uma relevante parte do orçamento para um par de óculos escuros vendido por seu amigo de infância, Cleudesney.

Saiu da farmácia, arrancou o tubo Axé da sacola, retirou a tampa, enfiou com a mão esquerda por debaixo da camisa sob o sovaco direito e apertou. Apertou com toda a garra dos mortais, despejando em um só lance mais da metade das semanas de reflexão, questionamentos, suspense e drama. O líquido escorreu pelo corpo, molhou a camisa e se misturou àquele odor que a natureza o havia agraciado com tanto vigor. Ficou puto, ao ponto de não ousar espremer o tubo sob o outro sovaco.

Chegou em casa e a recepção foi diferente; um misto de graça e surpresa, de estranhamento e simpatia pelos novos ares que entravam na casa. A avó perguntou - “Que cheiro é esse?”; a irmã mais nova torcia o nariz para o futum misturado com groselha; a mãe perguntava se haveria festa na laje. Robs não deu bola. Banhou-se na água que caía do cano no banheiro. Sim, naquela noite haveria festa na laje. Antes de vestir a roupa, fez valer o investimento no tubo Axé, com mais calma desta vez, nas duas axilas.

Saiu, e como dizia na propaganda do seu desodorante, “recuperou as mulheres que os astros de rock tomaram de você”. No caso, os cantores de pagode. Esta é a cara do Brasil: sovacos cheirosos para espantar a cultura podre.

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sábado, novembro 14, 2009

O Apartheid é holandês


Depois de quase três anos volto a postar algo por aqui. Desta vez não será uma longa matéria, apenas um relato pessoal de uma das figuras mais representativas do cenario mundial do século XX, responsável por também umas das mudanças sociais mais significativas daquele século. Falo de Nelson Mandela.

Terminei há pouco de assistir um documentário sobre a vida desse que pra mim é o maior herói ainda vivo no planeta. Posso estar sendo passional, e acredito que o esteja, mas nao é a primeira vez que isso acontece e espero nao ser a última.

Antes de falar que Mandela foi "o cara" por terminar com o regime segregacionista de nome africâner Apartheid, acho interessante dar mais um passo atrás na raiz desse contexto material-histórico-dialético. Muitas vezes os brancos descendentes de ingleses são culpados pelo regime racista na África do Sul. Discordo disso, mesmo sob a pena de calorosas oposições. Na minha opinião, os brancos ingleses também foram vítimas do Apartheid. Explico.

Dentro de um modelo imperialista adotado pelas potências européias no século XIX, que perdurou até o início do século XX, os ingleses se espalharam pelo mundo e adotaram um comportamento de salvadores das terras habitadas por povos "menos desenvolvidos". Mas o uso da violência não era a forma adotada pelos ingleses para governar em ultramar. Em muitos casos, a criação de uma burocracia servia para a manutenção do poder nas mãos dos colonizadores e como despulpa de garantia de civilidade aos colonizados. O uso da violência e do racismo como forma de governo não era o foco dos ingleses, repercutindo inclusive de forma negativa na opinião pública da Inglaterra. A fixação dos ingleses na África do Sul não se daria diferentemente, a não ser por um problema: os boêres.

Os boêres (ou africâners) são um povo descendente principalmente de holandeses que foram levados para a costa da África do Sul para auxiliarem as embarcações holandesas que cruzavam o Cabo da Boa Esperança. Esse povo, isolado num ambiente agreste, criou uma verdadeira sociedade distinta de suas origens. Adotaram o trabalho escravo e um modo de produção precário e predatório, que pouco lhe rendia riquezas. Levavam também uma certa vida nômade. Não havia demarcaçoes de terras e podiam se mover dentro do país sem problemas. Os boêres se confrontaram com o modelo inglês de produção, sobretudo no período de mineração, quando a emigração para aquele país cresceu consideravelmente. Apegados à agricultura, os boêres não tiraram proveito do ouro nem dos outros minerais que enriqueciam ingleses, aventureiros e financistas de alguns outros países. Criticavam a contratação de negros, mesmo que fosse por baixos salários. Para os boêres, negro era sinônimo de escravo.

Mesmo com um modelo de produção e um estilo de vida quase primata, os boêres tiveram grande sucesso em convencer os ingleses que a diferença de cor significava diferença de relação e de direitos. Aos poucos, os ingleses prostituíram a sua própria política ultramarina, sobretudo porque a ausência de leis para os territórios conquistados e a grande autonomia dos delegados da coroa inglesa nesses territórios possibilitou que os burocratas na África do Sul tomassem medidas a seu bel prazer. Assim, os negros foram sendo cada vez mais expulsos dos empregos públicos, mesmo que o governo tivesse um custo até cinco vezes maior na contratação de um branco para exercer a mesma função. Foram tendo seus direitos civis reduzidos até que, em 1912, oficializou-se o Apartheid. Os ingleses perderam para os holandeses (mesmo com a negativa dos boêres de serem chamados assim).

Desde então a história é conhecida. Opressão, segregação, sofrimento e dor. A luta dos negros sulafricanos pela igualdade de direitos só não é maior do que a atitude desse povo ao chegarem ao poder. Não houve revanchismo, mas a criação de um estado multiétnico e democrático. A Comissão de Reconciliação e Paz, que percorreu todo o país relatando os crimes ocorridos durante o Apartheid, conseguiu escrever um capítulo da história que vale a pena ser admirado. A importância da história superou a vingança, e todos aqueles que cometeram crimes em nome do regime e que confessaram seus crimes foram absolvidos. Apenas os que resistiram à roda da evolução foram julgados e presos.

Nelson Mandela foi o maior líder desse movimento por uma África do Sul igualitária. Mas muitos outros também lutaram por esse ideal. Para muitos o Apartheid foi um modelo predecessor do nazismo, mas que resistiu por mais cinquenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas isso é assunto para outra hora...

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sábado, janeiro 27, 2007

Líbano: “A guerra nunca acaba, nunca acabará”


Por Brenno Sarques

Há 22 anos no Brasil, Youssef Elias El Khoumy, católico, saiu do Líbano aos vinte anos de idade. Veio passar o carnaval de 1985, visitar alguns parentes, e acabou fixando moradia em Campinas, bairro onde mora e se diz apaixonado até hoje. Preocupado com a onda de violência entre os próprios libaneses, Youssef fala de política, esperança e do histórico conflito no Oriente Médio, causado principalmente, pela presença forçada de Israel na região.

O acirramento entre governistas e oposicionistas tem algo a ver com a guerra entre o Líbano e Israel do ano passado?

Esta guerra que acontece agora no Líbano é diferente das outras, por que mistura sunitas, xiitas e católicos. Alguns apóiam o primeiro ministro Fouad Siniora, outros são contra e apóiam o presidente Emil Lahud. A raiva do povo contra Siniora é causada porque ele apóia Israel, não usou o exército Libanês na invasão israelense no Líbano, ano passado, e não faz nada para que as tropas de Israel desocupem regiões no sul de meu país.

Israel ainda controla territórios libaneses?

Sim. Ainda existem duas pequenas cidades no sul do Líbano sob controle dos israelenses. Até pouco tempo atrás, eram três cidades.

A situação começou a piorar depois da morte do ex-premier Rafik Hariri, em fevereiro de 2005 (em um ataque com um carro-bomba no centro de Beirute, capital do Líbano, matando 23 pessoas)?

Certamente. Aquilo foi tudo uma armação de Israel para jogar os libaneses contra a Síria. Quando ocorreu o atentado, todos os olhares se voltaram para o governo sírio, mas ele não foi culpado, quem matou Hariri foram os israelenses. Pelo contrário, a Síria, durante os trinta anos que esteve no Líbano, defendeu o país contra Israel, defendeu os muçulmanos e os católicos também. Depois da morte de Hariri, governo e população manifestaram e retiraram as tropas da Síria do Líbano. É isso que os judeus queriam, mas agora, o governo não se mobiliza para retirar as tropas israelenses do sul do Líbano. Siniora deveria ter mandado nosso exército para defender nosso país, nosso patrimônio, junto com o Hezbollah. O pior, é que o filho de Rafik Hariri, Saad Hariri, está junto com Siniora, ambos pró-Israel.

A atual situação pode gerar outra guerra civil como a de 1975-1990?

Com certeza. Vai ser ainda pior, porque antes, eram muçulmanos contra católicos. Agora está tudo misturado, não se sabe em quem confiar, quem é seu amigo ou inimigo. Falei com meu irmão, que é comandante-geral do exército e ele disse que grupos estão parando pessoas na estrada, verificando documentos e, dependendo do seu nome, te matam. A situação é grave, muito grave.

Qual a solução para o conflito?

Acredito que há duas coisas que podem resolver este problema. A primeira é a retirada do exército israelense do sul libanês. A segunda medida é uma nova eleição, colocando um primeiro ministro que se voltasse para o nosso país, que juntasse sunitas, xiitas e católicos em u objetivo comum. Em 2008, haverá eleições para presidente, mas para primeiro-ministro, vamos ter que esperar mais tempo.

O que te fez mudar para o Brasil?

Nasci no norte do Líbano, onde Jesus passou por duas vezes. Estudei engenharia civil durante dois anos, mas tive que parar devido à guerra. Lá é sempre assim: acaba uma guerra e começa outra, a guerra nunca acabará. Israel, Estados Unidos, Europeus, todos têm interesse na região. Estava cansado daquilo.Vim para cá; tinha tios aqui e em São Paulo. Hoje, sou mais brasileiro do que libanês, mesmo tendo visitado meu país por várias vezes. Ano passado, estava pronto para ir, mas Israel invadiu o sul do país, e acabei ficando aqui. Estava me preparando para ir agora, mas o clima fechou. Espero que melhore.

terça-feira, janeiro 23, 2007

“Qualquer iraquiano sofreu nas mãos de Saddam”




Brenno Sarques
10/01/2007

Único iraquiano em Goiás, o médico Subhi Ali Al Rubaie, saiu do Iraque na década de 60 por problemas políticos. Foi para a ex-Tchecoslováquia e lá ficou por quinze anos onde formou-se médico em Praga e casou-se com uma brasileira. Chegou em Goiânia em 1976 e foi para São Paulo, de onde voltou em 1982 e aqui ficou. Aos 67 anos - com os filhos Munir, Sami e Karina – Subhi, muçulmano xiita não-praticante, volta sempre ao Iraque: “tenho um amor muito grande pelo Iraque, como todos os iraquianos. Você sai do país e nunca esquece”. Há trinta anos no Brasil, Subhi sente-se um brasileiro, mas ainda tem saudades da terra onde passou a infância e juventude, de onde ainda tem muitas lembranças e parentes.


Como avalia a morte de Saddam e a forma como foi executado?

Ando enfrentando muitas perguntas sobre o assunto. Porque o Saddam foi morto, se realmente merecia ser executado e a influência dos EUA, eu sinto que muita gente não tem informações sobre o assunto, sinto que os brasileiros são cultos politicamente; geralmente eles querem saber tudo que acontece no mundo.

Pessoalmente acho que ele respondeu à Justiça iraquiana, mesmo com o país ainda não totalmente livre, acredito que o Iraque está melhor do que muitos países árabes, pois há o Congresso, primeiro ministro e presidente eleitos pelo povo. Poucos países árabes têm isso. Por outro lado, o país está ocupado, e vive hoje sob influência norte-americana. Em minha opinião, qualquer pessoa que faz o mal merece um julgamento. Saddam foi julgado pela Justiça iraquiana, os juízes são iraquianos, não tem nenhum americano no meio. Ao contrário, ele tinha advogados estrangeiros e o processo decorreu normalmente, foi a Justiça que decidiu seu final. Creio que a execução foi rápida porque o Tribunal tinha medo que gente importante no Iraque fosse seqüestrada e o resgate fosse a libertação de Saddam. Mas a maneira em que foi executado, ninguém pode falar sobre isso. Cada país tem sua forma de terminar com criminosos. Nos EUA há injeção, noutros lugares, bala, e lá é com enforcamento. Foram feitas fotografias, e o vídeo, que saiu do controle do governo porque hoje não há como evitar isso, celulares têm câmeras. Mas acho uma maneira muito crua de mostrar uma pessoa sendo executada. Essa pessoa que filmou deve estar ganhando dinheiro vendendo para imprensa.

Os juízes foram imparciais ou sofreram pressão norte-americana?

Não acredito que haja influência sobre os juízes. Saddam respondeu processos sob as leis iraquianas, muitas delas criadas pelo próprio ditador, nos anos 70. Mas, apesar de ter feito muitas coisas pelo Iraque, ele merecia um julgamento. Qualquer iraquiano sofreu nas mãos de Saddam. Eu saí do Iraque em 1964, no governo de Ahmad Hassan al-Bakr do partido Baath, de Saddam Hussein. Mas quem continuou vivendo lá sofreu muito. Qualquer pessoa de lá, você pode ligar o canal de TV iraquiano e comprovar, está sorrindo, mas as televisões só mostram quem está contra. É normal, ele ficou 30 anos no poder, e criou raízes em muitas pessoas. Mas ele é conhecido como uma pessoa que lutou contra os EUA. Mas todos sabem que, nos anos 80, Saddam negociou com os Estados Unidos e comprou armas deles para usar contra o Irã. Mas depois tornou-se inimigo dos EUA e usou isto para atrair o apoio dos árabes. Hussein é muito popular entre os árabes e no mundo. Porque ele se manifestou por muitos anos contra os EUA.

Saddam pode se transformar em um herói?

Não. Mesmo os sunitas sofreram muito com seu governo. Acredito que esta onda de violência é de curto prazo, deve durar dois ou três meses, visto que ainda há os saddanistas que até agora tinham um ídolo, mas ele acabou. O governo está convidando o partido Baath para integrar o governo, sentar junto, mas mudar algumas coisas. São todos iraquianos, e a morte dele não vai trazer catástrofes para o país.

Saddam Hussein é corajoso. Por duas ou três vezes ele participou de atos corajosos. Uma vez, em 1959, participou da tentativa de assassinato do primeiro-ministro Abd-al-Karim Qasim, depois da revolução em 1958, que derrubou o rei. O então primeiro ministro e aproximou-se da União Soviética, mas antes, quem dissesse que era socialista morria. Aí vieram os baathistas, aliados ao Nasser (Egito), e derrubaram o governo. Qasim foi ferido, mas não morreu. Saddam foi para o Egito, estudou e depois voltou para o Iraque, já como vice presidente, onde freqüentou a escola de direito. Ele é corajoso, por isso ele tem saldo no mundo e muita gente lamenta sua morte e faz manifestações. Mas muita gente desconhece o que ele fez, porque Saddam foi inteligente e não deixou vazar informações sobre as crueldades que ele fazia em seu país. Cemitérios clandestinos e muitas outras coisas que estão sendo descobertos agora. Nem os árabes que o apóiam não sabem do sofrimento dos iraquianos. Todo mundo tem um história de sofrimento. Não sou a favor da morte de uma pessoa, mas o destino cada um é quem faz. Ele cometeu crimes e merece um julgamento e um final.

Pode haver uma união árabe maior para o desenvolvimento da região e contra os EUA?

Acho muito difícil a união dos países árabes, com ou sem Saddam Hussein. Estes países têm diversas políticas, a maioria das nações árabes são parceiras dos Estados Unidos; ou por medo deles, ou por medo de seu próprio povo, que não concorda com seus políticos. A parceria com os EUA dá segurança a esses dirigentes contra inimigos externos e internos, como é o caso do rei da Jordânia, da Arábia Saudita, e outros. Ultimamente os dirigentes sentem que os árabes estão contra os EUA, nenhum povo árabe gosta de seus dirigentes, porque sofreram bastante, estão muito pobres, mesmo morando em países ricos. Os líderes árabes têm medo dos EUA também porque, caso Washington acredite que o governo de alguma nação não está bom, pode fazer como no Iraque e remover os dirigentes de qualquer país. Por isso acho muito difícil a união dos países árabes, inclusive porque a maioria deles está contra o Iraque, sobretudo pelo caminho que tomou. Hoje, o Iraque é um país com dirigentes eleitos. Hoje vejo o Congresso e não acredito que aquilo seja o Iraque: que são contra o governo, falam mal do que acontece lá, e todos os segmentos participam, apesar de que eu não concordo com o modelo sectário adotado entre sunitas, xiitas e curdos, onde deveria fazer uma federalização geográfica, como ocorre no Brasil. Os países árabes têm inveja do Iraque.

Existe alguma parceria Irã e Iraque, mesmo depois da guerra entre os dois?

Desde que houve a invasão do Iraque, sempre houve cooperação entre os dois países. O Irã ajuda e apóia muito o Iraque. Mas percebo os interesses do Irã no meu país: são vizinhos e o Irã tem problemas com os árabes. Há ilhas no Golfo Pérsico da Arábia Saudita que foram ocupadas pelos iranianos, por isso que o Iraque foi empurrado para a guerra contra o Irã pelos países árabes. Agora os iranianos querem atrair o Iraque para firmar um parceiro e retirar os norte-americanos de lá, justamente pelo medo que têm de ser o próximo país a sofrer uma invasão pelas tropas dos Estados Unidos, que estão bem ao lado. Querem afastar os americanos da fronteira do Irã, é uma autodefesa deles. Mas o Iraque também tem interesses no Irã. Eles oferecem apoio financeiro e moral aos iraquianos, tratam da questão dos curdos (há muitos deles no Irã), etc.

Quem é pior: Saddam ou Bush?

Os dois são ruins. Saddam podia ficar lá, mas ele fez muito mal para o país. Mas eu, como iraquiano, ainda prefiro Saddam ao Bush. Se eu fosse norte-americano, talvez preferiria o Bush. Se o Iraque continuasse com Saddam, pouco mudaria. Se ele estivesse ficado junto com o povo, tivesse o apoio da população, ninguém deixaria que capturassem Saddam Hussein, todos iriam para a porta da casa dele para morrer por ele. Ele deveria ter governado de forma diferente. Mas a população deixou invadir o país porque não queriam mais o ditador. Não tinham boas lembranças dele e pensaram: “deixem os americanos entrar e depois lutamos para tirá-los. É mais fácil tirar os americanos do que Saddam Hussein”.

Saddam segurou o poder com mão de ferro. O povo não tinha escolha. Mas o Bush também não dá, ninguém gosta dele. Pergunte nas ruas e você vai ver. Esse negócio de terrorismo foram eles que criaram por motivo de política nacional. A pressão gera contra-pressão, e um povo oprimido vai reagir.

Como o Sr. Vê a atuação do primeiro ministro Nouri Maliki, que sinalizou sua saída antes do final de seu mandato?

Desde que Maliki entrou, os políticos são de diversas frentes. Eles assumiram uma direção junto com o primeiro ministro e assumiram a identidade iraquiana sobre o sectarismo. Todos sentiram isso e trabalham por isso. Acontece que outros dirigentes saíram do país e começaram a criticar o governo e pediram para a ONU entrar no Iraque e destituir o governo. Foi isso que fez Maliki declarar sua possível saída antecipada, pois vários dirigentes foram abandonando o governo. Aí entram as influências de outros países, como a Arábia Saudita, que diz que se houver uma guerra civil no Iraque, vão apoiar os sunitas, por que tem maioria sunita em seu país. Isso acaba com todo um trabalho de coalizão interna do governo. Tem dirigentes iraquianos que foram aos EUA pedir que Bush faça com que a Justiça iraquiana libertasse Saddam Hussein. Eles condenam a influência americana na Justiça do Iraque, mas vão pedir ao George Bush que se intrometa nos assuntos do país.

Como explica esta violência sectária, mesmo com este governo de coalizão, onde se esperava que houvesse uma resistência dos iraquianos contra os norte-americanos, mas vemos uma disputa sangrenta entre os próprios conterrâneos, que matou 12 mil civis somente em 2006?

A maioria de quem comete atentados não são iraquianos. Acredito que um iraquiano não mata seus conterrâneos. Nunca acreditei que um iraquiano fosse homem bomba, até hoje, nunca vi. Hoje, assistindo a Al-Jazeera, pegaram um grupo da Al-Qaeda que mandavam marroquinos para o Iraque. Acredito que mais de 90% dos atentados no Iraque sejam feitos por gente de fora.

A violência sectária é o maior problema do Iraque na atualidade?

Acredito que não. Não é o problema entre sunitas e xiitas. Na guerra do Líbano, entre cristãos e muçulmanos, viu-se que havia cristãos lutando com muçulmanos e vice-versa. Hoje, pela minha experiência e observação, o que vejo é um problema político. Há muita gente com interesses políticos. Há o grupo de Saddam Hussein, há outro grupo que quer chegar ao governo e não conseguiu, tem também muita gente que em de fora.

O Sr. concorda com a retirada imediata das forças estadunidenses?

Acho que hoje não devem sair. Sou contra a presença das tropas no Iraque, mas nesta situação, acho que devem ficar, uma vez que as instituições do país foram todas dissolvidas. Recomeçou-se do zero. Logo quando os americanos assumiram, não tinha nada no Iraque, como quando Cabral veio para o Brasil. Não havia governo, nem polícia, nem exército; nada. Imagina você chegar em uma cidade e não haver nem um cachorro para te ameaçar? Por isso acho que os americanos fizeram besteira. O dinheiro que Saddam tinha nos palácios, tudo foi roubado. Os museus do Iraque estão entre os maiores do mundo, visto que o Iraque é um país da Mesopotâmia, tempo de Assírios e Babilônios. Toda essa riqueza estava no museu do Iraque, onde eram necessários três dias para ver todas as obras. Tudo foi roubado. Os americanos foram defender o Ministério do Petróleo, e nem há petróleo lá (risos), só papéis. Eles não protegeram as riquezas do Iraque. As mesquitas, com muito ouro, foram todas saqueadas. Até hoje, estão voltando algumas coisas pequenas do museu do Iraque. Os soldados norte-americanos roubaram e espalharam pelo mundo.

Eles acabaram com o exército do país, porque pensam que o exército era de Saddam Hussein, mas é dos iraquianos. A maioria das pessoas é democrata, socialista e contra Saddam. Além disso, muitas pessoas do alto escalão do exército ficaram na rua. Eles foram acostumados com muita mordomia, o Saddam criou eles assim e, de repente, eles se viram sem nada. O que eles fazem? Usam violência. É como aqui, muitas vezes os criminosos são delegados ou policiais. Ali é a mesma coisa, eles pensam numa maneira de ganhar dinheiro.

George Bush sinalizou que vai enviar mais nove mil soldados ao Iraque, além de substituir o embaixador dos EUA na ONU, John Bolton, por Zalmay Khalilzad, nascido no Afeganistão, mas embaixador dos Estados-Unidos no Iraque. O que me diz sobre isso?

A política dos EUA não achou um caminho certo. Se eles entrassem no Iraque e colocassem ordem, o problema estava resolvido. Mas não tinham esse interesse, não há ordem lá. Hoje assisti que havia problemas com o povo, num setor da cidade onde o controle ainda está nas mãos dos americanos. Eles já formaram um novo exército iraquiano. É ridículo que as tropas de invasão ainda controlem cidades. Eles deveriam ir para o interior e buscar os grupos que cometem atentados contra os civis. Felizmente isso está diminuindo. Mas o Iraque ainda não está pronto para cuidar sozinho de seu território. Nas cidades, a polícia e o exército iraquianos podem tomar conta e deixar os exércitos de ocupação trabalhando fora. Mas ainda há saddanistas no exército. Eles chegam com carros e roupas do exército e assassinam, criam problemas. Isso tem que ser resolvido.

Na sua opinião, como estará o Iraque daqui a cinco anos?

É muito difícil de falar, mas espero que diminua esta violência e que, se depender dos iraquianos, vai melhorar. Se a política dos Estados Unidos em relação ao Iraque mudar, acredito que vai ajudar. Agora que temos um governo democrata, talvez a situação vai mudar um pouco. Porém, se continuarmos sofrendo interferência de fora e mantiver a atual política de ocupação, não creio que grandes melhoras. No lugar de mandar mais soldados, eles deveriam sair das cidades. É um problema muito grande para um iraquiano ver o exército de ocupação andando na rua. O povo tem uma sensibilidade muito grande contra esses exércitos. Nós fomos uma colônia inglesa e lutamos muito para a retirada dos ingleses. Muitos morreram para nos livrarmos da Inglaterra. Nenhum ser humano gosta de ver seu território ocupado. Imagine o Brasil com tanques americanos na rua, o que você sente? É isso que os iraquianos estão sentindo agora.

Esta invasão que vemos hoje é uma continuação da primeira Guerra do Golfo, deflagrada no início da década de noventa, quando o Iraque deixou de ser aliado e passou a ser inimigo dos EUA?

Pode ser uma continuidade, porque naquela época o Bush (pai), não retirou Saddam do governo, talvez para deixar o equilíbrio na região e conter a ascensão do Irã e de outros países do Golfo. Agora, o Bush (filho) decidiu retirar o presidente iraquiano. Não dá para explicar direito porque não dá para entender a cabeça de Bush. Entretanto, naquele tempo, a União Soviética estava acabando, mas ainda tinha muita força e não deixava os Estados Unidos fazer o que queriam, mas hoje não há força contra os EUA e eles fazem o que querem. Mas hoje eles estão pensando duas vezes antes de tomarem decisões. A política dos Estados Unidos perdeu muito apoio no mundo e os árabes estão gritando contra os norte-americanos. Mas praticamente nenhum líder árabe se manifesta contra os EUA. Até Kadafi (Muammar Kadafi, ditador da Líbia), que ficou muitos anos contra os Estados Unidos, entregou tudo.

A decadência do Iraque começou na guerra do Golfo, com a resolução 678 (1990) da ONU, que formou a coalizão para libertar o Kuwait, e o embargo econômico que durou até a queda do regime de Sadda. Isso criou um ambiente mais fácil para a invasão dos Estados Unidos em 2003?

O embargo acabou com o país. A ONU, sob influência dos EUA, cometeu um erro gravíssimo. Eu fui ao Iraque várias vezes durante o bloqueio. A situação era precária. Saddam fez mal, mas também fez bem ao país, na infra-estrutura, cultura, saúde, etc. Em 1990, eu li um relatório da Organização Mundial de Saúde, onde dizia que o Iraque, nesse quesito, entrava no patamar de países desenvolvidos. Mas veio a guerra do Kuwait, a invasão dos Estados Unidos, e acabou tudo. O Iraque andou cinqüenta anos para trás. Lá não havia mendigos, crianças e velhos nas ruas, nem analfabetos. Minha mulher foi ao Iraque depois do embargo e não acreditou: mulheres se prostituindo, crianças de rua e velhos jogados. A tradição iraquiana não permite fazer isso, deixar uma criança na rua e um velho no asilo. Agora está cheio de mendigos, tudo por causa do bloqueio, que não deu resultados, só gerou uma catástrofe.


Como está a sua família em Bagdá?

A família está bem, sempre nos comunicamos. No tempo do bloqueio não tinha nem telefone. Tinha que esperar até tarde da noite. Às vezes ficava três, quatro dias tentando falar com eles. Eles estão em Bagdá, mas somos do sul do Iraque, entre Bassra e Bagdá, onde a Petrobrás tem poços de petróleo.

A vida segue normal, estão se queixando dos problemas de segurança. Ninguém pode sair com certeza de que vai voltar. Saíram muitos parentes também. Tenho sobrinhos na França, Inglaterra, e Noruega, quem podia sair, saiu. Mas outros não querem sair e dizem que se tiver que morrer, vão morrer no Iraque.

O Sr. Tem algum caso de morte na família por causa da invasão?

Tenho um irmão que morreu por motivos indiretos. Meu irmão era general e piloto do exército e, na época da invasão, em 2003, ele estava com problemas de bronquite asmática crônica. A situação era grave. Eu ligava para ele de hora em hora. Ele morreu por falta de atendimento médico porque os norte-americanos esvaziaram todos os hospitais para colocar os feridos deles, mas não havia nenhum ferido. Não houve resistência. Os iraquianos não ofereceram resistência ao exército de ocupação. Isso foi um recado a Saddam, os iraquianos foram passivos porque estavam cansados do ditador.

Pensa em viver lá novamente?

Tenho muita vontade. Minha esposa sempre me apóia. Já fomos da Europa para lá de carro, ela gosta muito do país e diz que, quando eu quiser, vamos para lá. Mas agora os meninos cresceram e não dá para interferir na vida deles. Quando melhorar talvez eu volte. Eu gostaria de voltar, mas não nesta situação.

Como é o povo iraquiano?

É um país muito bonito, muito bom. O povo é muito parecido com o brasileiro, é gente muito boa. Não é porque sou iraquiano, mas um dos melhores povos árabes é o iraquiano. Eles são muito pacíficos, alegres e hospedeiros. Há uma tradição árabe de usar um pilão para moer café, onde bate-se duas vezes no pilão e duas na lateral, o que ecoa um barulho. Quando o estrangeiro ou viajante chega a uma cidade, sem onde ficar, ele ouve o barulho do pilão, e lá fica, sem pagar nada. Esta é uma tradição árabe que mostra muito do povo iraquiano.

O Sr. vê uma saída para esta crise no Oriente Médio?

Infelizmente muito difícil, porque esta política dos EUA não é de curto prazo, os planos são de longo prazo, mesmo que mudem os presidentes e o Congresso. Eles dão apoio a Israel que têm que mudar. Hoje eles já percebem isso, mas o apoio ainda é incondicional. Isso gera uma situação muito difícil no Oriente. A sensibilidade árabe contra Israel aumenta cada vez mais, pelas agressões israelenses nos países da região e o apoio dos EUA. Quantas resoluções da ONU foram feitas contra Israel e os Estados Unidos vetaram? Israel foi um país criado contra a vontade dos árabes, e se os EUA não mudarem sua política sobre os judeus de lá e eles próprios não mudarem sua política no Oriente Médio, nunca chegaremos à paz. Eu, pessoalmente, penso que devemos deixar os judeus onde eles estão, não tem jeito, não dá pra fazer nada. Se eles vivessem quietos, eu garanto que eles ficariam em paz. Mas veja o que eles fazem: ocupam territórios na Síria, no Líbano, constroem o muro na Palestina, fazem as colônias e chamam para lá os judeus de todo o mundo sem se preocupar onde irão colocar essas pessoas. Depois que eles chegam, muitas vezes não têm onde morar, onde comer, como voltar. A Alemanha mandou quatro submarinos para Israel, um foi comprado, os outros foram de graça. Eles ainda têm a imagem do povo massacrado pelo holocausto, mas Hitler matou 60 milhões de pessoas e ninguém fala dos 20 milhões de russos que morreram na guerra. Os judeus são privilegiados, a Alemanha paga indenização até hoje. Israel é testa de ferro dos Estados Unidos porque, sempre que invadem algum território, os árabes vão a Washington pedir ajuda do governo para que os judeus saiam de lá, e os americanos ajudam, em troca de concessões.

Crítica à imprensa
Subhi Ali Al Rubaie afirma que a cobertura da mídia ocidental sobre os problemas do Oriente Médio leva à ignorância e ao aumento do preconceito contra o mundo muçulmano. “A imprensa deveria publicar o que realmente acontece. Atualmente o que é mostrado parece que todos os iraquianos são a favor de Hussein. A imprensa tem sempre que seguir uma posição neutra, mostrar os dois lados”.

segunda-feira, novembro 20, 2006

ONU, salvação do planeta, ou instrumento repressor?


A Organização das Nações Unidas é, antes de tudo, um órgão político internacional onde são tratados as disputas por espaços econômicos, culturais e mesmo geográficos. A própria criação das Nações Unidas, iniciada em12 de janeiro de 1942, pela Declaração das Nações Unidas, onde os representantes de 26 países assumiram o compromisso de continuar a luta contra as potências do Eixo é o primeiro exemplo dessa disputa.

Na ocasião, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt, no comando dos aliados na Segunda Guerra Mundial, elevava os Estados Unidos à maior potência econômica mundial. Anos mais tarde, entre 25 de abril a 26 de junho de 1945, 50 países se reuniram em São Francisco, durante a Conferência sobre Organização Internacional, para redigir a Carta das Nações Unidas. Eles tomaram como ponto de partida, os trabalhos feitos em Dumbarton Oaks (EUA), no ano anterior, onde participaram representantes da China, Estados Unidos, França, Reino Unido e a ex-União Soviética (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança). As Nações Unidas, passam a existir oficialmente em 24 de outubro de 1945, após a ratificação da Carta pela, pelos 50 países presentes em São Francisco, além da Polônia. Por isso, o 24 de outubro é comemorado em todo o mundo como o "Dia das Nações Unidas".

A assinatura e a posterior ratificação da Carta ocorreram em um ambiente internacional diferente daquele em que o mundo se encontrava em 1942. O fim da guerra trouxe um novo contexto, com novos atores assumindo o controle econômico de grandes territórios. Ao mesmo tempo, outros países tornavam-se independentes de suas metrópoles européias. O novo mapa geopolítico internacional teve sua constituição formada em julho de 1944, quando representantes de 28 países assinaram os Artigos do Acordo elaborado na Conferência de Bretton Woods, nos Estados Unidos.

Foi em Bretton Woods que alguns organismos da ONU foram idealizados como, por exemplo, o Banco Mundial. Sua concepção é anterior à ratificação da Carta das Nações Unidas, mas sua fundação ocorre somente em 27 de dezembro de 1945, dois meses após a fundação da ONU.

Os Estados Unidos aproveitaram do desmoronamento das instituições e da infra-estrutura européias para financiar a reconstrução desses países. Entretanto, para receberem os recursos norte-americanos, os europeus tiveram que aceitar concessões que lhes custaram caro. Perderam suas colônias na Ásia e África - onde os EUA imediatamente ”invadiram”com sua economia de mercado – e viram o dólar tornar-se a moeda corrente nas transações internacionais.

Conselho de Segurança (CS)
O Conselho de Segurança é um dos tópicos mais controversos da ONU. Constituído por 15 membros, sendo cinco permanentes - Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, França e China - e dez não-permanentes, estes eleitos pela Assembléia Geral por dois anos, o Conselho de Segurança tem poder para decidir sobre grande parte das questões geopolíticas levadas à ONU.

O Conselho de Segurança tem a atribuição de manter a paz e a segurança internacionais conforme os propósitos e princípios das Nações Unidas. Somente ele pode tomar decisões, observados os artigos da Carta, em que os Estados-Membros ficam obrigados a cumprir, formula planos para o estabelecimento de um sistema para a regulamentação dos armamentos e determina a existência de ameaças à paz ou atos de agressão e recomendar as providências a tomar.

O CS pode também solicitar aos membros a aplicação de sanções econômicas ou outras medidas que não impliquem emprego de força, mas sejam capazes de evitar ou suspender a agressão; pode empreender ação militar contra um agressor; recomendar a admissão de novos membros as Nações Unidas e as condições sob as quais os Estados poderão tornar-se partes do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. O Conselho exerce funções de tutela das Nações Unidas nas “zonas estratégicas” e recomenda à Assembléia Geral a nomeação do Secretário-Geral e, juntamente com a Assembléia Geral, elege os juízes da Corte Internacional de Justiça. Por fim, o Conselho apresenta relatórios anuais e especiais à Assembléia Geral.

Cada membro do Conselho tem direito a um voto. As decisões sobre procedimentos são aprovadas com votos afirmativos de nove dos 15 membros. As decisões relativas a questões de fundo também necessitam de nove votos, incluindo os dos cinco membros permanentes. Esta é a regra da "unanimidade das grandes potências", também chamada de "veto". Aí está o grande problema que, para a opinião pública, demonstra claramente que os princípios de igualdade soberana de todas as nações não passa de um discurso. Os membros permanentes do Conselho de Segurança são os únicos capazes de, por si só, vetarem alguma proposta ou resolução.

Mais um ato tipicamente político é usar a abstenção ao invés do veto. Se um membro permanente não apóia uma decisão, mas não deseja bloqueá-la através do veto, pode abster-se de participar da votação ou declarar que não participa da votação. A abstenção e a não participação não são consideradas vetos, mas a decisão em pauta não é aprovada.

A afirmação de que a ONU é uma instituição eminentemente política, confirma-se quando todos os membros das Nações Unidas são obrigados a aceitar e cumprir as decisões do Conselho; legitimado pela própria Carta.

Assembléia Geral
A Assembléia Geral das Nações Unidas é responsável por examinar e fazer recomendações sobre os princípios da cooperação internacional para a manutenção da paz e da segurança, inclusive os princípios que regem o desarmamento e a regulamentação dos armamentos. Cabe a ela discutir quaisquer questões que afetem a paz e a segurança e, exceto quando uma situação ou controvérsia estiver sendo debatida pelo Conselho de Segurança, formular recomendações a respeito. A Assembléia também discute e, salvo exceção acima, formula recomendações sobre qualquer questão dentro das atribuições da Carta ou que afete as atribuições e funções de qualquer órgão das Nações Unidas.

De acordo com a resolução "Unidos para a Paz", aprovada pela Assembléia Geral em novembro de 1950, se o Conselho de Segurança deixar de agir em face de uma aparente ameaça a paz, ruptura da paz ou ato de agressão por falta de unanimidade entre seus cinco membros permanentes, a própria Assembléia pode avocar a si a questão imediatamente, com a finalidade de recomendar aos Estados-Membros a adoção de medidas coletivas - inclusive, no caso de ruptura da paz ou ato de agressão, o emprego de força armada, quando necessário, para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais.

Nota-se que a Assembléia Geral é, quase sempre, subjulgada pelo Conselho de Segurança. O CS pode intervir na Assembléia sempre que ele julgar necessário. A única maneira de a Assembléia Geral passar por cima do Conselho de Segurança é no caso dos membros deste estarem em conflito e a cúpula encontrar-se inoperante. A relação entre a Assembléia Geral e o CS assemelha-se, grosso modo, à do poder Legislativo com o Executivo, onde um depende da lei criada pelo outro, mas que, ao mesmo tempo, para existir, depende de sua própria aprovação.

Corte Internacional de Justiça
Principal órgão judiciário das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia (Holanda), obedece seu Estatuto, contido na Carta da ONU, assim como o são todos os membros das Nações Unidas. Estados não-membros das ONU podem tornar-se partes do Estatuto, obedecendo às condições estipuladas para cada caso pela Assembléia Geral, sempre conforme a recomendação do Conselho de Segurança.

A Corte é o espaço onde todos os países que fazem parte do Estatuto podem recorrer a ela sobre qualquer caso. Disputas jurídicas de Estados não estatutários também podem ser feitas junto à Corte, sob a mão reguladora do Conselho de Segurança, que pode impor certas condições para os países não-membros.

Legislativo, Executivo e Judiciário. Assembléia Geral, Conselho de Segurança e Corte Internacional de Justiça, respectivamente. Fecha-se a tríade do modelo político-administrativo das Nações Unidas.

Banco Mundial
Os objetivos do Banco Mundial se resumem basicamente a emprestar dinheiro a países que o necessitam. O financiador impõe regras para a concessão dos empréstimos, e também para a manutenção de crédito dos Estados junto à ele. As regras impostas pelo Banco Mundial extrapolam a própria esfera financeira; e se renovam de forma original a cada situação que se apresenta. Não é por acaso que a sede do Banco é em Washington D.C., EUA.

Fundo Monetário Internacional (FMI)
O Fundo foi criado em 27 de dezembro de 1946, com o depósito das ratificações do Acordo de Bretton Woods por parte dos países cujas quotas somavam 80% dos recursos do Fundo.

Enquanto o Banco Mundial trata da concessão de recursos para fins produtivos, o FMI opera no sentido especulativo. Seus objetivos são promover a cooperação monetária internacional, a expansão do comércio internacional e a estabilidade cambial. O Fundo é responsável também por manter ajustes cambiais eqüitativos e evitar desvalorizações cambiais competitivas, além de prestar assistência no estabelecimento de um sistema multilateral de pagamentos em relação às transações correntes entre membros e a eliminação das restrições cambiais em moedas estrangeiras que entravam o comércio mundial.

O Fundo vende divisas aos seus membros para ajudá-los a enfrentar dificuldades referentes à balança de pagamentos, além de prestar assessoria aos governos em matéria de problemas financeiros. O Fundo recomenda medidas antiinflacionárias, preconizando investimentos e créditos bancários, despesas governamentais e tributação. Tais recomendações podem tornar-se regras para a cocessão de novos empréstimos. Assim como o Banco Mundial, a sede do FMI é em Washington, EUA.

Sem saída
As ações políticas estão em todas suas esferas. O controle de certos Estados sobre outros é legitimado de maneiras que garantem a manutenção do status-quo internacional. A legislação das Nações Unidas, seu julgamento e sua execução estão subordinados ao acordo de poucos países que, no fim, decidem o que será e o que não será feito. Por fim, há sempre o tentador argumento financeiro. A ONU ajuda, promove a paz e a segurança internacionais. Mas até que ponto as Nações Unidas são capazes de manter o planeta em relativo equilíbrio? Quantos são os conflitos existentes onde a ONU aparece apenas como uma organização assistencialista? Qual é a força que as Nações Unidas têm frente as vontades norte-americanas? Os Estados Unidos passaram por cima de todas as decisões do Conselho de Segurança em relação às ações militares no Afeganistão e no Iraque. Israel também não se preocupa com as decisões da ONU, mesmo tendo seu Estado sido artificialmente criado pela própria instituição.

Não há sanções econômicas, muito menos pressões políticas e, inimaginavelmente, ameaças armadas contra os Estados Unidos e seu parceiro umbilical, Israel. Ambos têm seu arsenal de armas de destruição em massa preparados para o uso, mas são os primeiros a apresentar sanções a países que não seguem a cartilha do CS; tudo sob a égide da “paz e segurança mundial”. Os Estados Unidos têm, inclusive a capacidade de admitir, e remover, presidentes de agências internacionais ligadas à ONU, conforme seus interesses estratégicos. Ingênuo é aquele que acredita na imparcialidade democrática das Nações Unidas.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Uma outra história de guerra


Brenno Sarques

Existem pessoas que passam a vida em completo anonimato, outras deixam um legado, uma lição, e se tornam imortais. Tive a oportunidade de ficar cara a cara com um desses personagens que fazem a diferença no mundo. Enquanto milhões de pessoas se matavam durante a Segunda Guerra Mundial, Arthur Howe tomou uma atitude diferente: foi para a guerra não para matar, mas para salvar vidas. Médico? Enfermeiro? Não, Howe era motorista de ambulância.

Durante a primavera de 1940, aos 19 anos, o então jovem universitário, nascido em Connecticut, nos Estados Unidos, alistou-se para ser voluntário do American Field Service (AFS), grupo de motoristas norte-americanos que, durante a Primeira Guerra Mundial foram à Europa para ajudar os franceses. Em 1939, o AFS recebeu um novo chamado de Paris para retornar aos campos de batalha.

Um grupo de soldados franceses havia escapado da invasão alemã e se refugiou na Inglaterra. Lá, eles formaram o Exército Francês Livre (Free French Army), sob o comando do general Charles de Gaulle. Eles passaram a integrar o 8° Exército Britânico e seguiram para a África. Em 1941, cinqüenta voluntários com suas ambulâncias partiram rumo ao Egito, para dar suporte aos britânicos.

África
O oceano Atlântico estava invadido por navios alemães. Para evitar o encontro no mar, os voluntários passaram 65 dias descendo a costa da América do Sul, passando pelo Cabo da Boa Esperança, na África do Sul e depois subindo a costa leste africana até atingir o Egito. De lá, Arthur e seus companheiros seguiram para a Síria, Líbano e Palestina. A tarefa do 8° Exército Britânico era impedir que as tropas do Eixo chegassem às reservas de petróleo no Oriente Médio.

No início de 1942, o palco de batalha era a cidade de Zahle, no Líbano. Foram três meses no front juntamente com o exército da Nova Zelândia. Em seguida, os AFSers (como eram chamados os motoristas) foram para Tobruk, na Líbia, onde uma divisão do exército australiano estava cercado pelos alemães. A única forma de entrar era pelo mar. A divisão australiana estava encurralada pelo exército de Hitler e precisava de suporte dos ingleses. Às 5:20h da manhã de 20 de junho de 1942, o Afrika Korps alemão atacou a cidade. Em dois dias, Tobruk estava nas mãos de Berlim. Neste ataque, doze motoristas voluntários foram mortos, Arthur estava lá, mas conseguiu escapar.

Passado o pesadelo de Tobruk, o objetivo era recuperar a cidade de El Alamein, última linha de defesa dos campos de petróleo. “Durante a viagem à El Alamein, os médicos tinham que decidir, entre os feridos, quem ainda deveria receber socorro e quem estava fadado a morrer. Os que não tinham mais salvação recebiam uma injeção de morfina para aliviar a dor e morrer em paz”, conta. A batalha de El Alamein foi o prelúdio do fracasso nazista na África. Os alemães e italianos preparavam-se para atacar Alexandria, mas foram surpreendidos pelas tropas inglesas. Contrariando as ordens de Hitler, de resistir até o último soldado, o marechal Erwin Rommel partiu em fuga com seus 250 mil homens rumo à Tunísia. Lá, foram capturados pelos norte-americanos.

Era hora de recuperar a cidade tomada pelos alemães. Foi quando o General Bernard Montgomery passou a comandar o 8° Exército. Em outubro de 1942, deu-se início a 12 dias de batalhas face-to-face, onde Arthur e seu grupo iam ao front para socorrer os feridos e levá-los para junto dos médicos. “Foram doze dias sem dormir, com pouca comida e muitas bombas sobre nossas cabeças”, lembra Howe. Ao final da batalha, Tobruk estava novamente sob o comando dos aliados.

No natal de 1942, as tropas do 8° Exército e os AFSers liderados por Howe seguiram para Trípoli, capital da Líbia. De lá partiriam para Tunis, capital da Tunísia, onde encontrariam o exército norte-americano em mais uma batalha.

As condições climáticas no deserto eram particularmente horríveis: altas temperaturas durante o dia, frio à noite e intensas tempestades de areia. Nesse período, Arthur comandava um grupo de 120 ambulâncias: “tínhamos que trocar o óleo das ambulâncias a cada dois dias. Quando chegamos em Trípoli, tivemos que trocar todos os motores de nossos veículos”, recorda.

A cidade de Tunis estava dominada por alemães e italianos. As forças norte-americanas avançavam pelo oeste da África, enquanto os ingleses pressionavam pelo leste do continente. A capital da Tunísia era um dos últimos focos de resistência de Hitler e Mussolini. Nesta altura da guerra, as tropas italianas se encontravam enfraquecidas, faltava combustível para os tanques e caminhões, mas as forças alemãs ainda estavam em boas condições de batalha.

Finalmente conquistada, os aliados permaneceram em Tunis, preparando-se para o próximo passo: invadir a Itália. A surpresa ao desembarcar em solo romano, foi deparar-se com o esgotamento das forças militares fascistas. A resistência era feita por alemães, ou mesmo por civis italianos.

O Fim
Para Howe, o pior da guerra ainda estava por vir. O maior sofrimento não foi o ferimento que sofrera na África, nem os traumas de tantas mortes e destruição enfrentados durante todo o período em que socorreu feridos. Ao chegar perto de Monte Castelo (lá, onde estavam os ‘pracinhas’ brasileiros), as tropas aliadas ocuparam um campo de pouso, cercado por prédios de oito andares, todos muito danificados. “Não havia como ocupar os andares superiores, mas podíamos nos abrigar nos inferiores”, afirma Arthur.

Era a época do inverno italiano. Chovia muito e o frio era intenso. Foi quando um grupo de civis italianos aproximou-se das tropas: “havia muitos idosos, mulheres e crianças, eles estavam andando há cerca de seis dias, estavam famintos e ao relento”, recorda. Mas a guerra não conhece a compaixão, e Howe tinha ordens para não deixar ninguém entrar nos prédios, a não ser suas tropas. “Tive que impedir aquelas pessoas de receberem abrigo, e elas tiveram que partir debaixo de uma forte chuva. Foi o pior dia que passei em toda a guerra”, emociona-se ao lembrar.

A última tarefa realizada por Arthur foi limpar um campo de prisioneiros construído pelos italianos. Havia uma montanha com mais de quatro metros de altura somente com sapatos dos prisioneiros assassinados. Depois de tanto tempo vivenciando os horrores da guerra, isso não causava mais nenhum impacto.

Terminada a guerra, o AFS tornou-se a maior instituição de intercâmbio entre estudantes no mundo. A missão ainda é garantir a paz, agora por meio da educação e da tolerância entre culturas. Milhares de estudantes de 55 nações têm anualmente a possibilidade de viver em uma outra realidade, em um outro país. Talvez esta seja a maior vitória de Howe.

Franceses lutaram entre si

Pouca gente sabe, mas durante a Segunda Grande Guerra, criou-se na cidade de Vichi, na França, uma tropa que nunca foi reconhecida pelos aliados. Os Vichi então passaram a colaborar com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e foram comandados por Pierre Laval e Jean François Darlan. Eles governaram a França enquanto o país estava sob ocupação nazista. Durante a guerra na África, o 8° Exército Britânico, do qual fazia parte o Exército Francês Livre, deparou-se com as tropas Vichi. Não deu outra: soldados franceses lutaram contra seus próprios conterrâneos.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Democracia chilena: exemplo para a América Latina?


Por Brenno Sarques
Com os tempos próprios de cada sociedade, o Chile deu um grande passo em busca da democracia, após passar por uma rígida ditadura que, assim como ocorreu em vários outros países latino-americanos, arrancou da população um período riquíssimo da história, um período de prosperidade cultural, em que ideais de igualdade e liberdade estavam em voga. Tudo cortado por uma lâmina cega. O sistema chileno pós ditadura continha ainda resquícios de um governo totalitário, intoleráveis para uma sociedade do século XXI.

Modelo democrático
O Chile teve sua constituição aprovada por plebiscito em 1980. O Presidente é eleito por um período de 4 anos, sem reeleição. Atualmente, quem assume a presidência é Michelle Bachelet, a primeira mulher na história do país a atingir tal cargo.

O Parlamento é composto pelo Senado e pela Câmara de Deputados. São 49 senadores com mandato de 8 anos. Na Câmara dos Deputados são 120 membros eleitos por período de 4 anos, com reeleição. O país conta com os Partidos Políticos - Democracia Cristã, Partido pela Democracia, Partido Socialista, Renovação Nacional, União Democrática Independente, Partido Radical Social-Democrático, União do Centro, Partido Comunista, Aliança Humanista-Verde.

Depois da queda do regime ditatorial de Augusto Pinochet, em 1990, o Chile passou por uma série de reformas constitucionais que removeram do sistema legal as prerrogativas das forças armadas.

Entre as emendas mais importantes aprovadas, em julho de 2005, pelo Senado, destacam-se a eliminação dos cargos de senadores vitalícios, que não exigiam o voto popular; a possibilidade de o presidente da República remover as cúpulas das Forças Armadas e da Polícia; o aumento do Tribunal Constitucional, de sete para dez integrantes, e a retirada do representante das Forças Armadas daquele Tribunal. Outra medida democrática foi a mudança na convocação do Conselho de Segurança Nacional que, a partir de então, só poderia ser feito pelo presidente da República; antes, os comandantes das três forças armadas podiam convocar o Conselho.

O novo Chile
Hoje o Chile desponta como um dos países mais democráticos da América Latina. Conforme o Índice de Participação Cidadã - estudo da Rede Interamericana para a Democracia, realizado em 2004, o país recebeu lugar de destaque entre as oito nações estudadas (Argentina, Brasil, Peru, México, República Dominicana, Costa Rica, Bolívia e, claro, Chile). Em uma escala de 1 a 10, o Chile atingiu 5,5 pontos, enquanto o Brasil restringiu-se a 3,8 pontos. Todavia, no estudo de 2005, o Brasil saltou para 5,1 pontos, enquanto que os chilenos caíram para 4,5 pontos, ficando em terceiro lugar.

No estudo de 2005, o Chile apresentou alta participação popular em atividades de apoio à Educação. Não é por menos: lá, 3,66% do PIB é investido em educação básica, a Argentina disponibiliza 3,65%, e o Brasil, só 2,98%.

Outro destaque do Chile frente aos seus companheiros de América Latina, refere-se aos níveis de corrupção. Conforme o estudo realizado pela revista Foreign Policy, o Chile apresenta os menores índices de corrupção do continente. O governo de Santiago supera países como Itália, Portugal, Espanha, Grécia e Coréia do Sul.

Segundo o “Índice de Desenvolvimento Democrático na América Latina” - um estudo da fundação alemã Konrad Adenauer - Chile, Costa Rica e Uruguai estão no topo da lista dos 18 países mais democráticos da região. Nicarágua, Venezuela, Bolívia e Equador estão no final da lista. O Brasil saltou da 12ª para a 8ª posição, um avanço em nossa democracia.

O estudo analisa o respeito aos direitos políticos, o exercício da cidadania e a eficiência de suas instituições públicas e políticas, entre outros aspectos. O “Índice de Desenvolvimento Democrático na América Latina” é publicado pela instituição desde 2002. A fundação Konrad Adenauer de ciências políticas é ligada ao partido da premiê alemã Angela Merkel.

Já no estudo realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2004, o Chile não se encontra entre os países sul-americanos com maior Índice de Democracia Eleitoral (IDE). Dos 18 países analisados, o Chile ficou em antepenúltimo lugar, à frente apenas da Guatemala e da Colômbia. O cálculo do IDE se baseou nos graus de participação da população, de interferência nos resultados das urnas, como fraudes, compra de votos, intimidações, graus de liberdade de candidaturas e de alternativas de voto e de importância do voto no acesso a cargos públicos.

Conforme o Artigo de Marta Lagos, publicado em 1997, no Journal of Democracy, da Johns Hopkins University Press, com a restauração da democracia em 1990 (depois de17 anos de ditadura), o Chile passou por um período de crise na economia, onde a privatização criou um estrato muito poderoso de empresários que hoje têm mais poder que os partidos, que supostamente os representam. Problemas ambientais e monopólios estão entre as conseqüências dessa herança.

Democracia Chile-Brasil
Em abril deste ano, um mês após assumir a Presidência do Chile, Michelle Bachelet esteve em Brasília para encontrar-se com o presidente Lula. Ela destacou a importância da democracia e do combate à pobreza na região. Para o professor de ciências políticas Guillermo Holzman, da Universidade do Chile, o Brasil e o Chile são o ponto de equilíbrio numa região onde os novos representantes são vistos com uma certa desconfiança no cenário internacional, considerados “outsiders” da política (dica-se de passagem, Evo Morales e Hugo Chavez). A presidente Bachelet quer intensificar a cláusula democrática do Mercosul para evitar crises entre os países, uma vez que as ações do bloco fogem da política tradicional. O chamado Mercosul ampliado inclui Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela, além do Chile e da Bolívia.

Dois lados da moeda
Todos estes dados, estudos e índices, ao mesmo tempo que nos apresentam informações sobre a atual situação da democracia no Chile, também trazem à tona uma série de questões ainda a serem descobertas: Está a democracia chilena atuando apenas em alguns setores da sociedade ou será que ela age em sua plenitude? Os dados são contraditórios. O país tem baixas taxas de corrupção, boa escolaridade para os níveis sul-americanos e uma atividade econômica relativamente estável. Mesmo assim, o Chile é considerado o país mais neo-liberal da América do Sul, mesmo elegendo consecutivamente quatro presidentes de centro-esquerda, além disso, o país atinge um dos piores índices de democracia eleitoral no continente, mostrando que ainda há muito o que fazer.
Um breve histórico do Chile

A capital Santiago foi fundada em 1541 e a proclamação da República do Chile ocorreu no dia 12 de fevereiro de 1818.

Durante o século XX, o general Carlos Ibáñez del Campo, foi ditador do Chile entre 1927 e 1931, e retornou à presidência em 1953, após as presidências do Partido Radical (1938-1952). Jorge Alessandri sucedeu Ibáñez em 1958, derrotando o socialista Salvador Allende por uma estreita margem de votos.

Em 1964 as eleições presidenciais deram vitória ao fundador do Partido Democrata Cristão, Eduardo Frei Montalva, que venceu o socialista Salvador Allende e o radical Julio Durán. O novo presidente implantou reformas sociais e econômicas, incluindo medidas no sistema educacional, habitação, sindicalização dos trabalhadores rurais e a reforma agrária. Mesmo assim, a esquerda mais radical não estava satisfeita e queria medidas mais fortes no campo social. Ao mesmo tempo, os conservadores achavam as reformas de Frei muito aventureiras.
Em 1970, Salvador Allende é eleito. Em 11 de setembro de 1973, Salvador Allende sofre um golpe de estado. Quem assume é o general Augusto Pinochet, instaurando a ditadura. Pinochet se manteve no poder até 1990.

O primeiro presidente da nova fase democrática chilena foi Patricio Aylwin, proeminente membro do Partido Democrata Cristão (PDC). Em 1994, elegeu-se Eduardo Frei Ruiz-Tagle, filho do ex-presidente Eduardo Frei Montalva e também filiado ao PDC. Em 2000 Ruiz-Tagle passou a faixa ao socialista Ricardo Lagos.

Em 2005, foi a vez de Michelle Bachelet eleger-se presidente. A primeira mulher no cargo é filha de uma vítima do regime de Augusto Pinochet. O país mantém seus governos de centro-esquerda desde a redemocratização.


Fontes: BBC Brasil; Wikipédia; Foreign Policy; Estadão; Clarín; PNUD-ONU; Opinião Pública; Rede Interamericana para a Democracia.